Papel de parede volta de Jesus
"ENTREGA TEU CAMINHO AO SENHOR, CONFIA NELE E O MAIS ELE FARA".
SALMOS 37.5

quinta-feira, 14 de abril de 2016

Religião. Religiões. Laicidade



No estilo profético peremptório que lhe era particular, André Malraux declarou que o nosso século seria religioso ou não seria. Morreu cedo de mais para assistir já neste começo de outro século não só ao que, em termos mediáticos, se designa como "o regresso de Deus", ou o triunfo do religioso, mas à proliferação de inumeráveis seitas — aos olhos dos cultos tradicionais — que congregam à sua volta tanto ou maior fervor que as chamadas religiõesestabelecidas. Parece que assistimos à ressurreição dos comportamentos que assinalaram os últimos tempos ainda gloriosos e cosmopolitas do Império Romano. Os mesmos que viram a emergência de uma nova Religião cujo triunfo espiritual, cultural e simbó­lico iria imprimir, primeiro ao espaço romanizado do Mediterrâneo, depois à Europa inteira, mais tarde aos domínios por ela influenciados, uma presença tendencialmente universal, expressão do carácter simbolicamente trans-étnico da sua mensagem, tal como São Paulo a precisou.
Embora muitos destes novos movimentos se reclamem ou pretendam situar-se na órbita do Cristianismo ou sejam a manifestação de uma sensibilidade e exigência espiritual de inspiração cristã e mesmo católica — como o movimento carismático —, não é esta vinculação a nota surpreendente e insólita, no horizonte da cultura europeia, desse bem mais vasto e espectacular "regresso do religioso". A surpresa é que esse famoso "regresso" — mesmo se pode ser lido quer como mero revivalismo quer como autêntica renovação da prática religiosa numa Europa que, ao mesmo tempo, glosa sem cansaço não só a "morte de Deus", como o mais genérico desencantamento do mundo —, qualquer que seja o seu conteúdo, traduz-se, sobretudo, na implantação e sucesso de religiões históricas, longamente ignoradas ou combatidas no interior do espaço e da cultura europeias. Tal é o caso do islão, trazido pela emigração magrebina e de outros cultos, tão alheios à Europa que só a título de exotismo eram aludidos, como o budismo. André Malraux, que viveu sempre fascinado pelo Oriente sob o modo da "tentação" e pelo seu tipo de religiosidade sincretista, veria, sem dúvida com bons olhos, este museu imaginário de crenças substituindo a secular tradição europeia não só de umareligião dominante mas exclusiva e, por assim dizer, inerente à identidade europeia.
Deixando de lado o fenómeno de moda — "Deus está na moda", "Cristo está na moda" —, o que só por si denota a extensão e a fundura da desertificação religiosa no espaço europeu (ou fora dele), o actual panorama de pluralismo religioso ou de potencial ecumenismo (um pouco forçado, diga-se de passagem...) só foi e é possível pelo facto de a cultura europeia se ter tornado, ao longo de um processo milenário, uma cultura tendencialmente laica. Laica não apenas como expressão histórica paradigmática da separação e, em seguida, autonomia do temporal e do espiritual, mas como lógica consequência da essência mesma do Cristianismo. Só no interior da cultura europeia, como sobredeterminada pelo Cristianismo, o conceito de laico e laicidade tem sentido. Pouco ou nenhum, fora dela.
A Lembrança da história do Cristianismo — em particular na sua forma cató­lica —, deixando de lado a sua versão polémica ou amarga, à maneira de Voltaire ou Sören Kierkegaard e, com maioria de razão, a linhagem daqueles que o impugnaram como Schopenhauer, Nietzsche ou Heidegger — poderia levar a ver nesta afirmação de uma genealogia cristã da laicidade um paradoxo de pouca relevância. Todavia, não só numa mera perspectiva dialéctica — o que nasce contra provém de onde nasce —, mas no da consideração da essência mesma do Cristianismo, o paradoxo nada tem de chocante. A laicidade é uma resposta, de algum modo, hipercristã, ao processo, na aparência incontível, de objectivação da mensagem cristã. Quer dizer, à metamorfose do Cristianismo em poder espiritual com efeitos na ordem do político, do jurídico, do ético e mesmo do metafísico,dogmaticamente formulados e historicamente encarnados. Não se trata, meramente, para empregar uma célebre fórmula ele Charles Péguy, da degradação do místico em político. É mais do que discutível que o Cristianismo seja uma mística, embora haja, naturalmente, uma mística cristã. É mesmo mais do que discutível que o Cristianismo seja uma religião,no sentido antigo e clássico do termo ciceroniano de religare, embora fosse esse o que, exceptuando o horizonte da teologia negativa, se impôs culturalmente. A religio, segundo Cícero, denota a dependência, o laço que ata o homem a Deus. Mas, de algum modo, esse laço não ata menos Deus ao homem. O Cristianismo está aquém ou além desta mútua interdependência. O nome de "Pai", dado a Deus, não é uma mera antropologização destinada a nomear o que não tem nem pode ter nome — como se fosse "criado" pela nossa nomeação —, mas a pura metáfora do sentimento de pura gratuidade que é a essência do laço que não nos ata a Deus — e muito menos Deus a nós — mas nos desata de todo o império da necessidade. Deus não é a nossa "propriedade", nem nós a de Deus. Na medida em que a "religião" cristã nas suas expressões históricas foi vivida, pregada, imposta como dever de amor a Deus (que como todo o amor não se impõe), a resistência a essa apropriação — a essa privatização — de Deus corresponde à vivência mesma, à realizaçãosingular do Cristianismo.
Na medida em que a "laicização" da cultura europeia não faz mais do que obedecer a essa inspiração, a laicidade, não só por paradoxo formal, mas por essência, exprime uma exigência religiosa. E não deixa de ser profunda a famosa boutade, "sou ateu graças a Deus", aplicada à laicidade. Mas todos sabemos que o histórico discurso laico na Europa — sobretudo na sua versão francesa — é um subproduto da cultura anticlerical quando, na verdade, devia ser o contrário. Equivocada ou excessivamente "formatada", como se diz hoje, a laicidade, ao menos negativamente, é "religiosa", por excesso de exigência religiosa. Mas com mais verdade por esquecimento da exigência de gratuidade do que é a essência mesma do Cristianismo.

https://www.publico.pt/mundo/noticia/religiao--religioes--laicidade-1728654

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