Documentário que estreia hoje tem depoimentos de Caetano Veloso e Chico Buarque, entre outros parentes e amigos de Bethânia. Foto: ARTHOUSE/DIVULGAÇÃO
“Uma
voz-pessoa, indissociável, desde sempre atada à música através da
poesia”, definiu Caetano Veloso, em depoimento à revista Rolling Stone,
em 2012, quando sua irmã Maria Bethânia foi eleita pela publicação uma
das maiores vozes da música brasileira. O cantor e compositor baiano
retoma essa definição nos minutos iniciais de Fevereiros, documentário
dirigido por Marcio Debellian, que estreia nesta quinta-feira (31). A
partir do desfile da Mangueira em homenagem a Maria Bethânia, realizado
em 2016, o longa retrata o sincretismo religioso adotado pela Abelha
Rainha da MPB, que transita entre o catolicismo e o candomblé.
A
relação que Bethânia promove entre música e poesia e que Caetano
ressalta em seu depoimento é o que instiga o diretor do filme a respeito
da personagem que escolheu retratar. “Bethânia te joga não só na
poesia, mas também no teatro, no cancioneiro de um Brasil profundo, na
nossa religiosidade e nas nossas raízes indígenas e africanas. É uma voz
que carrega o Brasil dentro de si”, afirma Debellian.
O
primeiro contato do diretor com a cantora foi breve e se deu durante as
filmagens do documentário Palavra (en)cantada, também voltado à relação
entre poética e musicalidade. Outros projetos acabaram aproximando os
dois. Em 2011, à frente da Debê Produções, Debellian reeditou o livro
Maria Bethânia, guerreira guerrilha, de Reynaldo Jardim, censurado
durante a ditadura militar. Em 2014, o documentarista dirigiu O vento lá
fora, em que Bethânia e Cleonice Berardinelli leem poemas de Fernando
Pessoa.
“Assim que tomei conhecimento da
homenagem da Mangueira a Bethânia, sabia que seria algo grande e que
merecia algum registro. Não tive tempo de captar recursos, apenas reuni,
às pressas, uma verdadeira equipe de guerrilha para começar as
filmagens”, conta Debellian. As gravações começaram em 2015, no barracão
da escola de samba, quando o desfile estava sendo concebido.
MEIA-NOITE
O
documentário também traz registros feitos em Santo Amaro, terra da
protagonista, localizada no Recôncavo Baiano. A cantora passa todo mês
de fevereiro na cidade em que nasceu e foi criada. O período é marcado
pelas celebrações religiosas, uma tradição que a região cultiva e
mantém. “O filme estreia em 31 de janeiro. À meia-noite, já será
fevereiro. É uma data representativa”, observa o diretor.
Além
de Caetano Veloso e da própria Bethânia, Fevereiros traz depoimentos de
Mabbel Veloso, poeta e irmã dos cantores; do carnavalesco Leandro
Vieira, responsável pelo desfile da Mangueira, entre outros envolvidos
na tríade música, crenças e folia. Há ainda uma breve e tocante
participação de Chico Buarque.
A musicalidade
de Maria Bethânia está presente em todo o longa. Cada ato é ligado por
canções interpretadas por ela, com direito a cenas de seus shows.
“Entendo que a música também é texto. Em Fevereiros, ela ajuda a
narrativa e a construção do roteiro”, afirma Debellian. “Bethânia é
famosa e querida pelo que canta. É natural que o filme faça uso de um
repertório tão rico. Certamente, as pessoas irão ao cinema querendo
ouvi-la.”
A trilha sonora ainda reúne
interpretações de Cartola, Caetano Veloso, Chico Buarque, além de sambas
da Mangueira e charangas populares de Santo Amaro.
SINCRETISMO
Revelando
os bastidores do desfile da Verde e Rosa, o longa adota a mesma
abordagem utilizada pela escola de samba em seu tributo à menina dos
olhos de Oyá, que garantiu a vitória da escola no carnaval do Rio em
2016. “A Mangueira poderia ter escolhido vários caminhos para essa
homenagem, mas optou pelo religioso”, aponta Debellian. Com os
depoimentos da cantora presentes no filme, conclui-se que a abordagem
não poderia ser mais adequada: fé e devoção são elementos fundamentais
tanto para sua arte quanto para sua vida.
Por
meio das crenças de Bethânia, devota de orixás e santos católicos,
Fevereiros lembra a confluência de religiões entre os brasileiros. “O
filme mostra um Brasil tolerante, que conjuga fé com fé, onde é possível
cultuar santos de religiões que não são a sua. O Recôncavo Baiano traz
essa convivência plena entre as religiões, o que se nota na própria
família Veloso, em que Caetano é ateu, Mabel é católica e Bethânia é
devota de Nossa Senhora e Iansã”, observa o diretor.
O
longa evoca ainda a valorização da cultura negra e de costumes de
matriz africana. “Santo Amaro respeita e preserva as tradições negras,
aliadas às mitologias e saberes dos índios, habitantes originais dessa
terra, e ao catolicismo ibérico vindo dos tempos de colonização. É tudo
muito forte e respeitado como raiz. É preciso entender que o Brasil é um
país mestiço e assumir isso como uma potência”, defende Debellian.
TOLERÂNCIA
“Fevereiros
fala de Maria Bethânia e da Mangueira, mas sobretudo de um Brasil em
que a fé é respeitada, cantada e festejada”, afirma o cineasta. Ele
revela ter tido o receio de que seu filme ficasse datado, já que retrata
o carnaval de 2016 e só chega aos cinemas três anos depois. “Mas,
nesses tempos em que o Brasil parece ter andado para trás, ele fica
ainda mais contemporâneo”, diz.
Fevereiros
chega aos cinemas em ano oportuno, segundo Debellian, que vê o país
virando as costas para si mesmo. “Uma tolerância religiosa que parecia
já ter sido conquistada volta a ser assunto, com crescentes ataques a
terreiros. Começamos a ver restrições ao samba e certo cerceamento de
artistas, o que remete a episódios do nosso passado”, avalia.
“Há
três anos, talvez as pessoas não se dessem conta da importância de um
trabalho de preservação das tradições. Ao mostrar um lugar onde as
diferenças fluem e ocorrem de maneira plena, afirmamos que esse Brasil
existe e tem algo a nos dizer”, afirma Debellian.
"O
filme mostra um Brasil tolerante, que conjuga fé com fé, onde é
possível cultuar santos de religiões que não são a sua. O Recôncavo
Baiano traz essa convivência plena entre as religiões, o que se nota na
própria família Veloso, em que Caetano é ateu, Mabel é católica e
Bethânia é devota de Nossa Senhora e Iansã”.
Marcio Debellian, diretor de Fevereiros.
http://www.diariodepernambuco.com.br/app/noticia/viver/2019/01/31/internas_viver,775861/fe-forca-e-carnaval-filme-sobre-bethania-tem-religiao-como-eixo.shtml
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