Mapeamento inédito da prefeitura de São Paulo obtido pelo site de VEJA aponta onde estão os 30 pontos de consumo de crack na maior cidade do país
Felipe Frazão
Mulher com cachimbo de crack no Viaduto Jabaquara, uma das principais cracolândias na Zona Sul de São Paulo - Ivan Pacheco
"Saia nóias”. A pichação (com erro gramatical) poderia ter sido feita em um muro qualquer do quadrilátero do centro da capital paulista conhecido como cracolândia, na região da Luz. Mas a frase estampa a repulsa de moradores da Brasilândia, Zona Norte de São Paulo, nas paredes de um beco da sinuosa Avenida Deputado Cantídio Sampaio, que corta uma série de bairros aos pés da Serra da Cantareira. O local é um dos trinta endereços da cidade onde os usuários de crack se juntam durante a noite para, pedra após pedra, consumir a vida em meio à escuridão.
O site de VEJA percorreu 25 deles nesta semana, depois de obter da prefeitura paulistana a localização exata dos pontos de consumo de crack na cidade. Os dados foram fornecidos pela Secretaria Municipal da Saúde (SMS), dois meses e meio depois de o órgão ter recebido um pedido formal por meio da Lei de Acesso à Informação. Até hoje, o mapeamento das maiores cracolândias da cidade (cientificamente chamadas “cenas de uso de crack”) era mantido em sigilo.
Em fevereiro, a reportagem solicitou a mesma informação a pesquisadores da Fundação Oswaldo Cruz (Fiocruz) – eles realizaram entre 2011 e 2013 o mais importante levantamento nacional sobre o crack, encomendado pelo Ministério da Justiça. O epidemiologista Francisco Inácio Bastos, coordenador da pesquisa "Perfil dos usuários de crack e/ou similares no Brasil", argumentou que não poderia indicar os endereços porque os comitês de ética dos municípios participantes exigiram "estrito sigilo" sobre a identificação dos locais e dos usuários. Segundo Bastos, nem mesmo o Ministério Público de São Paulo recebeu a informação ao solicitar os endereços à Fiocruz. Quando os resultados da pesquisa foram divulgados no ano passado, os mapas indicavam apenas manchas gráficas.
Os trinta pontos indicados pela prefeitura mostram que as cracolândias se expandiram para longe das ações do poder público estadual e municipal nas quatro regiões da cidade (Norte, Sul, Leste e Oeste), apesar de o Centro ainda reunir o maior número de usuários. É na cracolândia "original", consolidada desde os anos 1990 na Luz, que os programas "Recomeço", do governo Geraldo Alckmin (PSDB), e "De Braços Abertos", da gestão Fernando Haddad (PT), concentram as equipes de abordagem e encaminhamento para tratamento de saúde, cadastram dependentes químicos, oferecem trabalho temporário – e alojamento em hotéis, no caso do programa da prefeitura.
As novas cracolândias foram listadas por funcionários das supervisões de saúde mental da prefeitura em janeiro deste ano. Elas representam "cenas de uso de crack frequentes" com cem ou mais dependentes, segundo a psiquiatra Cibele Neder, assessora de saúde mental, álcool e outras drogas da SMS. Ela diz que mais de 200 pontos de uso de crack foram descobertos em toda a cidade, mas que os trinta listados são os considerados problemáticos, com mais aglomeração de pessoas e de uso permanente. "Para a gente chamar de local com problema e que mereça a intervenção do poder público, fizemos um corte com as cenas constantes, com mais de cem pessoas, e que já existissem há algum tempo", disse Cibele. "São locais que já estabeleceram uma dinâmica própria e têm um fluxo constante, mesmo que não sejam as mesmas pessoas. Eles estão diretamente ligados à oferta, ao tráfico de drogas. As pessoas vão ao lugar onde sabem que vão encontrar o crack."
Ficaram de fora do mapa da prefeitura locais onde já houve concentração de usuários de crack retratada pela imprensa, como a Rua Apa e o Elevado Costa e Silva (Minhocão), em Santa Cecília, a Mata do Iguatemi, no Jardim Pedra Branca, os arredores do Viaduto Liberdade, na Liberdade, o canteiro central da Avenida Inajar de Souza, Zona Norte, e a Vila Nova Galvão, na divisa com Guarulhos (SP).
À noite, foi possível encontrar mais de cinquenta dependentes reunidos no Parque Dom Pedro, ao lado Viaduto Diário Popular, na Baixada do Glicério, que faz parte região central degradada. Eles fumavam crack em canteiros do parque, escondidos sob cobertores e agachados nas passarelas do viaduto. Perto dali, um grupo de cinco dependentes ocupava a praça do Viaduto Bresser, na Mooca. Em geral, as cracolândias têm um grupo fixo e frequentadores que passam cerca de três dias e depois se dispersam – gente suficiente para manter o fluxo constante.
As maiores aglomerações foram verificadas no Viaduto Jabaquara, na Avenida dos Bandeirantes, e nos arredores do Ceagesp, maior centro de distribuição de frutas e verduras da América Latina, na Lapa. Em ambos os lugares, havia barracas montadas e mais de cinquenta usuários durante o dia. No Jabaquara, eles recebiam as pedras de crack de uma favela próxima à avenida. Traficantes atravessavam as pistas e desciam os barrancos rapidamente no leva e trás da droga. Eles eram seguidos apenas por cachorros. Os usuários, inclusive um cadeirante, ocupavam as duas margens sob o viaduto e se arriscavam a caminhar na pista. No Ceagesp, eles ficavam próximos a um conjunto habitacional, em ruas com lixo acumulado e farta comida descartada. Além de se esparramarem nas calçadas, acenderam fogueiras e usaram guarda-chuvas para esconder os cachimbos acesos. A cena funciona na rua atrás da sede do 91º DP da Polícia Civil.
Quem é o usuário de crack
NAS CAPITAIS
A pesquisa da Fiocruz identificou o perfil do usuário de crack brasileiro nas capitais: ele é majoritariamente masculino, de cor não-branca, solteiro, adulto na faixa dos 30 anos e de baixa escolaridade (Ensino Fundamental incompleto). A média de consumo é de dezesseis pedras por dia, há um tempo médio de oito anos. Eles começam a fumar pela curiosidade de experimentar os efeitos do crack e também consomem álcool, maconha, cocaína e similares. A maioria consegue dinheiro para comprar pedras de crack com trabalhos esporádicos, esmolas, empréstimos de parentes, pequenos roubos, furtos e prostituição. A maioria deles já teve passagem pela polícia.
A pesquisa da Fiocruz identificou o perfil do usuário de crack brasileiro nas capitais: ele é majoritariamente masculino, de cor não-branca, solteiro, adulto na faixa dos 30 anos e de baixa escolaridade (Ensino Fundamental incompleto). A média de consumo é de dezesseis pedras por dia, há um tempo médio de oito anos. Eles começam a fumar pela curiosidade de experimentar os efeitos do crack e também consomem álcool, maconha, cocaína e similares. A maioria consegue dinheiro para comprar pedras de crack com trabalhos esporádicos, esmolas, empréstimos de parentes, pequenos roubos, furtos e prostituição. A maioria deles já teve passagem pela polícia.
A prefeitura expandirá pela primeira vez as ações do atual plano de enfrentamento do crack nessas duas cracolândias: Jabaquara e Ceagesp. No Jabaquara, assistentes sociais e agentes comunitários de saúde já abordaram usuários. E um Centro de Atenção Psicossocial Álcool e Drogas (CAPS-AD) deverá ser instalado para atender dependentes químicos no Ceagesp. Depois o programa tende a ser instalado em Itaquera. Nem sempre o programa oferecerá os mesmos serviços e benefícios (trabalho remunerado, alojamento, refeições e tratamento) que fazem parte do pacote na região da Luz. Os coordenadores afirmam que a determinação é ouvir o que as pessoas querem receber. Na Luz, a demanda era por "um local para tomar banho, comida e trabalho". O atendimento de saúde era considerado secundário, e odontológico, prioridade.
Também na Zona Sul, a reportagem flagrou um dependente circulando com o cachimbo de crack em riste nos arredores do Cemitério São Luiz, no Jardim São Luís. Na Zona Leste, dois usuários fumavam pedras de crack na entrada da Favela da Paz, na Avenida Miguel Inácio Cury, a dez minutos de caminhada do Itaquerão, o estádio de abertura da Copa do Mundo. A cracolândia da favela se espalha num muro abandonado ao redor do pátio do Metrô: é um ponto de prostituição infantil, apinhado de cápsulas de cocaína vazias. Em São Miguel Paulista, os usuários que já ocuparam a Praça do Forró agora se transferiram para a Rua Severina Leopoldina de Souza, ao lado de um mercadão e do Hospital e Maternidade São Miguel. Traficantes agem livremente na rua sem saída. Na Penha, os usuários montaram cabanas sob o Viaduto Engenheiro Alberto Badra, ao lado de uma favela de barracos de madeira – ainda repleta de cinzas por causa de um incêndio recente.
O crescimento de cracolândias nas periferias costuma ser associado por estudiosos do tema a operações de remoção mal sucedidas no passado, como a promovida pela Polícia Militar em janeiro de 2012. A PM ocupou a região central e tentou dispersar a aglomeração de usuários e sufocar as vendas de traficantes, ao passo que a prefeitura passou a limpar as ruas e demoliu uma série de casebres onde os dependentes se escondiam. O fluxo de usuários na Luz diminuiu, e supõe-se que muitos deles tenham migrado de vez para outros locais. Mas não houve monitoramento adequado para comprovar a migração. Nesta semana, um grupo de dependentes resistente aos programas do Estado e da prefeitura montou acampamento na Alameda Cleveland. A pracinha ficou lotada: traficantes se aproximavam em bicicletas para vender pedras, enquanto os usuários ofereciam para troca quinquilharias e objetos roubados, como caixas de som portáteis, cordões e telefones. Havia crianças e adolescentes entre eles, além de grávidas. A movimentação era caótica, num ritmo particular. "Temos que entender esse fenômeno como um de lazer das pessoas", diz Cibele. "Elas criam uma sociabilidade, constituem uma comunidade com regras de convivência e certa solidariedade e relações interpessoais. A droga é mais uma consequência do desemprego e da miséria e não a causa."
Um fator que dificulta a localização das cenas de uso e seu monitoramento é a intensa mobilidade de usuários. Os pesquisadores da Fiocruz relataram que as cracolândias mudam durante os turnos do dia, como se houvesse uma pela manhã, outra à tarde e uma terceira realidade à noite. Eles também notaram que as cenas públicas de consumo da droga mudam conforme as condições climáticas, as decisões do tráfico ou a ocorrência de operações policiais e intervenções urbanísticas.
Durante as visitas a 25 cracolândias nesta semana, o site de VEJA só conseguiu localizar usuários em treze pontos – e em quantidades que variaram de dois a cerca de trezentos viciados. A reportagem não visitou duas cenas de uso no extremo sul da capital e três endereços em favelas da Zona Leste, apontados pela Polícia Militar como "bocas de fumo" (ponto de venda de drogas). O psicólogo e doutor em Epidemiologia em Saúde Pública Carlos Linhares relatou à Agência Fiocruz que, durante estudo sobre cenas de uso do Rio de Janeiro, não foi possível acessar metade dos 193 locais de consumo de crack na capital fluminense.
Fica na Zona Norte a maior quantidade de cracolândias encontrada. No Jardim Andaraí, próximo à Rodovia Presidente Dutra, usuários ocupavam duas ruas: a Balaiada e a Nilton Coelho de Andrade. Além dos barracos na calçada, usavam uma fogueira na rua para espantar o frio. No beco da Brasilândia, os usuários se reuniam para fumar crack em pequenos grupos. Três deles se escondiam atrás de colchões e dentro de uma Kombi azul de janelas escuras. No chão, além de pinos de cocaína abertos, viam-se também pedaços cortados de antenas de carro – usados para montar o cachimbo do crack. Funcionários do aterro industrial que funciona no terreno da antiga pedreira Itaberaba, em frente ao local, disseram que traficantes do bairro também repelem os usuários dali.
Eles se espalham ainda nos piscinões da Avenida General Penha Brasil: cinco deles usavam drogas no Piscinão do Bananal e dois no Guaraú, no Jardim Peri. A comerciante e moradora da avenida Aurora Murakami, de 54 anos, reclamou de roubos em frente à sua loja. "Esse pessoal começou a se espalhar pela periferia. São Paulo virou um monte de zumbis", diz.
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