Papel de parede volta de Jesus
"ENTREGA TEU CAMINHO AO SENHOR, CONFIA NELE E O MAIS ELE FARA".
SALMOS 37.5

segunda-feira, 25 de agosto de 2014

Da atualidade do Antigo Testamento e do primitivismo dos pós-cristãos


Por André Quirino


Alguém já disse que acreditar em Deus ficou mais difícil depois que se inventou 
a energia elétrica. “Por que apelar a um ser supremo que começou a criar o mundo
 dizendo ‘Haja luz’ quando o homem pode fazer surgir luz diante de si no simples 
ato de apertar um interruptor numa parede?”, pergunta-se o homem moderno. 
A descrença é especialmente enfática quando se está diante do Antigo Testamento.
 Aos olhos modernos, as narrativas veterotestamentárias permeadas de sangue
 parecem demasiado impuras, não condizentes com o nosso ideal de boa religião. 
Entre cristãos, a descrença se atenua, mas permanece como seu resquício 
um desconforto. Temos dificuldade em pregar toda a Palavra inspirada 
(2 Tm 3.16), que inclui os escritos primitivos – destinados ao nosso ensino
 (Rm 15.4) –, para uma sociedade que se crê avançada o suficiente para superar
 as guerras passadas e futuras.

A solução para esse impasse não está em se enfiar o Antigo Testamento
 goela abaixo dos ouvintes, como costumeiramente se faz. De fato, a Lei se
 cumpriu em Cristo e, portanto, o Novo Testamento tem alguma prioridade
 em nossa devoção e nossa pregação. Mas, quando não se crê nem na Lei 
nem na sua consumação, que é Cristo, qualquer crença alternativa será um 
retrocesso em relação tanto a Cristo quanto à Lei. A crença moderna 
está fundada, essencialmente, no ser humano. Essa é a fé dos que se 
autodenominam “pós-cristãos”. Contudo, a fé no ser humano é não somente 
pré-cristã (e o prefixo “pré” aqui carrega, sim, um julgamento de valor, assim 
como “pós” em “pós-cristão”), mas também pré-hebraica.

Trata-se de uma crença ingênua. O ser humano mudou muito menos do que se 
imagina, desde a Antiguidade. O instinto violento que nos escandaliza no Antigo 
Testamento permanece em nós e, se, por um lado, construímos dispositivos legais
 que servem de alternativa à violência como resolução de conflitos na 
comunidade, por outro lado, quando esses dispositivos são insuficientes,
 a violência eclode com força redobrada. As duas grandes guerras do século
 XX dão mostra disso, e a nossa afetação de que aqueles foram episódios
 isolados, já devidamente superados, é sintomática. Agimos com cinismo, 
repetindo, como quem quer convencer a si mesmo, que tragédias como as
 do século passado não podem acontecer de novo, não aqui, não agora.
 No fundo sabemos que podem e, o que é pior, é por covardia que não 
o assumimos.

Precisamente aí reside a relevância do Antigo Testamento para a modernidade. 
As invejas, as brigas, as guerras que lemos na Torá não nos são estranhas,
 e ela não apenas escancara a natureza que está em nós e da qual erroneamente
 tentamos esquecer, mas, pelo fato mesmo de a expor, nos dá também uma
 lição de honestidade e coragem. Ao olhar hoje para cadáveres amontoados, 
com muita razão perguntamos onde está Deus. Os antigos também faziam essa 
pergunta, mas algo de essencial diferencia a atitude deles da nossa: eles 
esperavam pela resposta. “Onde está Deus?”, nas bocas modernas,
 tornou-se uma pergunta retórica. É para nós mesmos que a fazemos. 
Os antigos, que eram menos covardes, faziam-na ao próprio Deus – e, 
como vemos no Antigo Testamento, Ele a respondia.

O existencialismo, na modernidade, pensou ser o primeiro movimento do 
intelecto humano a se colocar diante da morte e encará-la. Mesmo 
um gigante como Shakespeare, interpretamo-lo como um pretenso 
redescobridor da roda, que, ao fazer Hamlet dizer, com uma caveira na mão, 
“ser ou não ser: eis a questão”, estaria enunciando uma preocupação
 tipicamente moderna. Na verdade, o questionamento de Hamlet – 
e Shakespeare certamente sabia disso –, embora novo na forma, é de um 
conteúdo tão antigo quanto a própria razão humana.

O homem moderno não é o primeiro a encarar a dureza e frieza de um cadáver 
que se decompõe. Outros já a encararam e, ao fazê-lo, reagiram mais sabiamente 
– conquanto não menos desesperadamente. O moderno dirige suas perguntas
 àquele que inventou a luz elétrica, chega mesmo perto de dirigi-las ao interruptor 
que está na parede de sua casa. Precisa aprender com a coragem e sinceridade
 do salmista que lamenta: “No Seol, ninguém te louva” (Sl. 6.5), do piedoso 
que esbraveja: “Acaso tens tu olhos de carne?” (Jó 10.4) e dos judeus que 
repetidamente desabafam: “Por que o Senhor não escolhe outro povo?” 
É desconcertante dizê-lo, mas é necessário: a modernidade que pensa ter superado 
Deus não aprendeu ainda sequer a ofendê-Lo.

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