Por André Quirino
Alguém já disse que acreditar em Deus ficou mais difícil depois que se inventou
a energia elétrica. “Por que apelar a um ser supremo que começou a criar o mundo
dizendo ‘Haja luz’ quando o homem pode fazer surgir luz diante de si no simples
ato de apertar um interruptor numa parede?”, pergunta-se o homem moderno.
A descrença é especialmente enfática quando se está diante do Antigo Testamento.
Aos olhos modernos, as narrativas veterotestamentárias permeadas de sangue
parecem demasiado impuras, não condizentes com o nosso ideal de boa religião.
Entre cristãos, a descrença se atenua, mas permanece como seu resquício
um desconforto. Temos dificuldade em pregar toda a Palavra inspirada
(2 Tm 3.16), que inclui os escritos primitivos – destinados ao nosso ensino
(Rm 15.4) –, para uma sociedade que se crê avançada o suficiente para superar
as guerras passadas e futuras.
A solução para esse impasse não está em se enfiar o Antigo Testamento
goela abaixo dos ouvintes, como costumeiramente se faz. De fato, a Lei se
cumpriu em Cristo e, portanto, o Novo Testamento tem alguma prioridade
em nossa devoção e nossa pregação. Mas, quando não se crê nem na Lei
nem na sua consumação, que é Cristo, qualquer crença alternativa será um
retrocesso em relação tanto a Cristo quanto à Lei. A crença moderna
está fundada, essencialmente, no ser humano. Essa é a fé dos que se
autodenominam “pós-cristãos”. Contudo, a fé no ser humano é não somente
pré-cristã (e o prefixo “pré” aqui carrega, sim, um julgamento de valor, assim
como “pós” em “pós-cristão”), mas também pré-hebraica.
Trata-se de uma crença ingênua. O ser humano mudou muito menos do que se
imagina, desde a Antiguidade. O instinto violento que nos escandaliza no Antigo
Testamento permanece em nós e, se, por um lado, construímos dispositivos legais
que servem de alternativa à violência como resolução de conflitos na
comunidade, por outro lado, quando esses dispositivos são insuficientes,
a violência eclode com força redobrada. As duas grandes guerras do século
XX dão mostra disso, e a nossa afetação de que aqueles foram episódios
isolados, já devidamente superados, é sintomática. Agimos com cinismo,
repetindo, como quem quer convencer a si mesmo, que tragédias como as
do século passado não podem acontecer de novo, não aqui, não agora.
No fundo sabemos que podem e, o que é pior, é por covardia que não
o assumimos.
Precisamente aí reside a relevância do Antigo Testamento para a modernidade.
As invejas, as brigas, as guerras que lemos na Torá não nos são estranhas,
e ela não apenas escancara a natureza que está em nós e da qual erroneamente
tentamos esquecer, mas, pelo fato mesmo de a expor, nos dá também uma
lição de honestidade e coragem. Ao olhar hoje para cadáveres amontoados,
com muita razão perguntamos onde está Deus. Os antigos também faziam essa
pergunta, mas algo de essencial diferencia a atitude deles da nossa: eles
esperavam pela resposta. “Onde está Deus?”, nas bocas modernas,
tornou-se uma pergunta retórica. É para nós mesmos que a fazemos.
Os antigos, que eram menos covardes, faziam-na ao próprio Deus – e,
como vemos no Antigo Testamento, Ele a respondia.
O existencialismo, na modernidade, pensou ser o primeiro movimento do
intelecto humano a se colocar diante da morte e encará-la. Mesmo
um gigante como Shakespeare, interpretamo-lo como um pretenso
redescobridor da roda, que, ao fazer Hamlet dizer, com uma caveira na mão,
“ser ou não ser: eis a questão”, estaria enunciando uma preocupação
tipicamente moderna. Na verdade, o questionamento de Hamlet –
e Shakespeare certamente sabia disso –, embora novo na forma, é de um
conteúdo tão antigo quanto a própria razão humana.
O homem moderno não é o primeiro a encarar a dureza e frieza de um cadáver
que se decompõe. Outros já a encararam e, ao fazê-lo, reagiram mais sabiamente
– conquanto não menos desesperadamente. O moderno dirige suas perguntas
àquele que inventou a luz elétrica, chega mesmo perto de dirigi-las ao interruptor
que está na parede de sua casa. Precisa aprender com a coragem e sinceridade
do salmista que lamenta: “No Seol, ninguém te louva” (Sl. 6.5), do piedoso
que esbraveja: “Acaso tens tu olhos de carne?” (Jó 10.4) e dos judeus que
repetidamente desabafam: “Por que o Senhor não escolhe outro povo?”
É desconcertante dizê-lo, mas é necessário: a modernidade que pensa ter superado
Deus não aprendeu ainda sequer a ofendê-Lo.
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