Papel de parede volta de Jesus
"ENTREGA TEU CAMINHO AO SENHOR, CONFIA NELE E O MAIS ELE FARA".
SALMOS 37.5

sábado, 28 de dezembro de 2013

É possível ser gay e cristão?


Cansados da exclusão religiosa, os homossexuais criam suas próprias igrejas e inventam novas formas de interpretar as proibições da 'Bíblia'
 
MARÍLIACAMARGO                                                                                                  
INCLUSÃO Igreja gay na cidade de São Paulo, neste ano. Os fiéis se sentem livres do desprezo e da indiferença  (Foto: Zanone Fraissat/Folhapress)
                                                         

                                         
 
No próximo dia 13, no Rio de Janeiro, em meio à extravagância e ao carnaval que costumam marcar a Parada Gay, um grupo de jovens ligados à Igreja da Comunidade Metropolitana distribuirá folhetos e erguerá cartazes em que anunciam o amor incondicional de Deus por todos os homens, incluindo homossexuais, travestis e transgêneros.

Esse pequeno rebanho de ovelhas, lideradas no Rio pelo pastor Márcio Retamero, faz parte de uma das comunidades chamadas “inclusivas”. São pessoas, em sua maioria de orientação homoafetiva, que acreditam na releitura dos trechos das Sagradas Escrituras que condenam a prática homossexual. Dados aproximados revelam a existência de 28 comunidades desse tipo organizadas no Brasil, em nove Estados. Um levantamento entre os líderes dessas comunidades, feito a pedido da BBC-Brasil em 2012, sugere uma frequência estimada de 10 mil pessoas. Muitas delas foram expulsas de igrejas evangélicas tradicionais, após assumir ser gays, ou afastadas por uma forma mais sutil de assassinato: o desprezo ou a indiferença.


Sem saber, os participantes da Parada Gay repetirão uma forma de manifesto organizada pela primeira vez na história em 1970, nas ruas de Los Angeles, nos Estados Unidos, por um pastor protestante. Ordenado pastor batista quando tinha apenas 15 anos, numa pequena congregação no Estado da Flórida, onde se casou e teve dois filhos, o reverendo Troy Perry se afastara do trabalho após divorciar-se da esposa e admitir ser gay.
Depois de entrar numa crise existencial, que o levou perto do suicídio, Perry diz ter recebido um chamado divino para voltar a pastorear – desta vez, com a atenção voltada às pessoas que, como ele, eram discriminadas por causa da orientação sexual. Assim nasceu a Metropolitan Community Churches (MCC), a primeira denominação inclusiva dos Estados Unidos. A MCC reúne hoje 43 mil membros, em 222 congregações espalhadas por 37 países. Está no Brasil desde 2009, onde conta com oito comunidades. O trabalho do pastor carioca Márcio Retamero está vinculado à MCC.

O chamado pastoral de Perry deu origem à controversa teologia inclusiva, também denominada teologia queer (outra palavra para gay, em inglês), ou afirmativa. Trata-se de uma reinterpretação bíblica contestada pelos teólogos tradicionais.

Um exemplo dessa releitura está na conhecida história sobre a destruição das cidades de Sodoma e Gomorra, narrada no livro de Gênesis. Os inclusivos usam uma passagem bíblica do livro do profeta Ezequiel (Ezequiel 16:49) para reforçar sua teoria de que o grande pecado das duas cidades não foi a devassidão homossexual, mas a falta de hospitalidade e de justiça social. O texto bíblico afirma: “Eis que essa foi a iniquidade de Sodoma, fartura de pão e próspera ociosidade teve ela e suas filhas, mas nunca amparou o pobre e o necessitado”. Ausência de interesse por justiça social e de preocupação com os viajantes numa cultura nômade, onde ser hospitaleiro era um dos traços de generosidade mais importantes, são os grandes pecados que os teólogos gays atribuem a Sodoma e Gomorra.

 Os pesquisadores tradicionais contestam. Dizem que aqueles que advogam apenas falta de cortesia ou de preocupação social por parte da população de Sodoma ignoram a passagem do livro de Judas, que afirma: “De modo semelhante a estes, Sodoma e Gomorra e as cidades em redor se entregaram à imoralidade e a relações sexuais antinaturais. Estando sob o castigo do fogo eterno, elas servem de exemplo”.
 
CASTIGO A destruição de Sodoma, em quadro de Veronese (1510-1553). A teologia gay recusa a culpa (Foto: Burstein Collection/Corbis)
 
 
“Há uma tradição de 5 mil anos de história judaico-cristã-islâmica e até agora não surgira nenhum teólogo, nenhum exegeta que tivesse feito outra leitura desses textos. De Abraão até o século XX, não houve releituras. De repente, surge um grupo que teve uma iluminação”, afirmou, com ironia, em entrevista para o livro Entre a cruz e o arco-íris, de minha autoria, Dom Robinson Cavalcanti, arcebispo da Diocese de Olinda da Igreja Anglicana do Cone Sul da América. Dom Robinson, morto em 2012, acreditava que esse debate estava inserido num movimento cultural global, de caráter ideológico. “A Igreja teve os pais apostólicos, os pais da Igreja, os reformadores, a filosofia oriental ortodoxa, e ninguém nunca viu isso. Agora chegam os americanos e fazem uma releitura”, afirmou. “Trata-se de uma grande pirueta teológica.”



A discussão teológica é apenas uma das questões que pautam o difícil relacionamento entre as igrejas cristãs e os fiéis homossexuais. Quando se mergulha nesse universo, como eu fiz, fica claro que as igrejas ainda não estão dispostas nem preparadas para desenvolver uma pastoral adequada aos homossexuais, uma minoria que, como os leprosos nos tempos de Jesus, é deixada à margem e condenada ao isolamento.

O pastor Ricardo Barbosa, da Igreja Presbiteriana do Planalto, em Brasília, um experiente conselheiro de casais cristãos, resume bem a questão: “Ouvi de um rapaz que foi homossexual praticante durante muito tempo que nós afirmamos que a graça de Deus basta, que Deus ama o pecador. Cantamos para que eles venham como estão. Mas não no caso dos gays. No caso dos gays, pedimos que mudem primeiro. A Igreja deve manter o mesmo convite para todos, para que todos possam caminhar em direção à vida que Cristo nos oferece. A Igreja precisa se preparar para isso”.

Não se trata de uma conversa fácil e, nessa arena, muitos lutam com as armas de que dispõem em favor daquilo em que acreditam. Pastores surgem na televisão, inflamados, amaldiçoando a homossexualidade como o pecado sem perdão. Ativistas gays, por outro lado, combatem a postura das igrejas, na tentativa de amordaçá-las e impedi-las, por via legal, de ensinar o que as Escrituras Sagradas estabelecem a respeito do assunto. Assim descreve o teólogo e escritor Richard Foster: “A homossexualidade é um problema tão difícil de tratar dentro da comunidade cristã que tudo o que for dito será severamente criticado”.

Por mais que pareça estranho, muitos cristãos ignoram o fato de que há um rebanho formado por homossexuais que congrega, nas igrejas, anônimos, sem poder assumir quem são, levando vidas que Henry David Thoreau definiu como de “silencioso desespero”. São pessoas comuns, cristãos sinceros que nutrem o desejo de servir ao mesmo Senhor adorado pela maioria heterossexual. São homens e mulheres que foram aceitos pelo amor incondicional de um Deus que, segundo a Bíblia, não faz distinção entre as pessoas, mas que descobriram, na prática, igrejas que a fazem.

Por essa razão, é de esperar que as igrejas inclusivas continuem crescendo também no Brasil. Os líderes das comunidades evangélicas amigas dos gays preveem o dobro do número de fiéis nos próximos cinco anos. Mesmo essas congregações podem não ser a resposta ideal para alguns. A arquiteta Fátima Regina de Souza, um dos personagens de meu livro, frequentou por um tempo uma dessas comunidades, onde fez amigos. Ela não se adaptou. Não gostou da sensação de ficar confinada a um gueto.

Para Fátima, o lado mais difícil em sua viagem de autoconhecimento e autoaceitação é enfrentar o preconceito. Ela tem a impressão de que as pessoas sempre pensam que o homossexual cristão não fez tudo o que podia para mudar, não buscou a Deus o suficiente. “É como se a gente estivesse sempre em falta”, diz ela. “As pessoas lançam esse olhar de desconfiança sobre nós sem nem antes encarar os próprios problemas. Isso machuca muito. Com o tempo, a gente vai aprendendo a se proteger.”

Há alguns anos, Fátima voltou a reunir-se numa pequena e acolhedora congregação, em Ribeirão Preto, onde mora. Ali, diz ter encontrado cristãos que a amaram do jeito que ela é e, segundo diz, tornaram sua vida viável. 

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